A viagem do real

A VIAGEM DO REAL – PARTE I
Coluna Semanal – Jornal O Expresso – Capão Bonito
 Foi um plantão agitado na Santa Casa de Capão Bonito. Eram três da manhã quando pude repousar. Às quatro horas o telefone do repouso toca. Havia um paciente “muito descontrolado” no Pronto Socorro. Ao chegar, ainda bocejando, vi uma cena bem esquisita. O paciente, verborrágico, dizia insolências aos quatro policiais que o escoltavam. Vestido de forma excêntrica, brincos na orelha, cabeça raspada, ele desafiava os presentes e não tardou a vociferar para mim, o recém chegado plantonista: “Ninguém sabe nada! Você também não sabe nada!” e plantava bananeira na frente dos poucos presentes, acompanhantes de pacientes internados e dos policiais.

Já cansado, sem vontade de delongar aquele assunto durante a madrugada e querendo dormir alguns minutos mais, pedi à enfermagem que aplicasse o rotineiro “sossega leão”. Após o coquetel de injeções fortíssimas o exótico visitante regressava tranquilo para sua casa e eu para o quartinho do repouso médico, naquelas alturas mais aconchegante que uma pousada na montanha.

Qual a minha surpresa, quando dois dias depois, de novo de plantão, às quatro horas da manhã, sou chamado ao mesmo cenário. Lá estava o cara, agitadão, “causando”, acompanhado por um séquito de policiais. Cheguei sem que me visse, pois não queria ser novamente chacoteado pelo incômodo visitante da madrugada. A enfermeira falou que era a quinta vez que chegava ao PS, nos últimos dias, “surtado”.

Já preenchia o folheto, ainda escondido, prescrevendo o rotineiro sossega leão, quando ouvi que ele dizia: “Vocês estão fora da ordem, não chegam à raiz dos fatos, a medicina está errada, a polícia deveria fazer outra coisa, etc..”. Verborrágico, surtado. Mas aquelas palavras tinham algo de lucidez. Fui à frente do irreverente paciente e, bem autoritário, disse que fosse ao consultório, acompanhado de policiais. O cortejo que o acompanhava, incluindo a calejada mãe, não acreditavam que um médico iria tentar dialogar com o jovem mancebo amalucado. Entramos no consultório. Na frente dos policiais ele tira um pacote cheio de cannabis e diz: “Doutor! Vamos fumar um baseado” e adota o típico gestual de desfazer as bolotas da erva. Eu olhei com desdém, sinalizando os tiras com um olho, para que nada fizessem e disparei:

“Essa erva aí não está com nada! Conheço uma outra erva que vai fazer você subir lá pra cima, junto das estrelas” – para surpresa dos fardados mantenedores da ordem, que mal acreditavam no que ouviam. “Esta erva é a grama do trigo. Quando você aprender a plantar e usar todos os dias, você vai conhecer a verdadeira viagem!”. Conversamos muito e ele me olhou nos olhos e disse. “Taí doutor, fui com a sua cara!”. Não teve jeito, tive que passar alguns psicotrópicos para o rapaz, que se acalmou e foi para a casa. Prometi à sua mãe que o visitaria. E assim o fiz.

Fui à sua casa, ele gostou, mas sua agitação não permitia que ficasse sequer um minuto parado. No quintal subiu os muros com uma rapidez incrível, mostrando grande coordenação, mas uma irrefreável agitação. Naquele mesmo dia o ensinei a abraçar uma árvore e absorver dela a energia vibratória do planeta, que pode nos acalmar. Ele abraçou a árvore e eu perguntei se ele podia ver sua copa, a vida que havia nela, e os pássaros que cantavam em seus galhos. Tentei pelo menos ensiná-lo a plantar a grama do trigo.

Por duas vezes o vi perambulando pela cidade, gritando desatinos e silenciei por sua cura. Tive que viajar e soube que fora transferido a Sorocaba, onde receberia tratamento psiquiátrico. Na volta, ofereci um curso especial na Santa Casa, onde participaram o colega doutor Gino, o agricultor Myiata, a estudante da UNICAMP, Érica e um médico italiano, Dr. Fabio Rodaro, que viera ao Brasil para aprender em Capão Bonito este novo ofício médico.

Ao saber que havia tido alta da clínica psiquiátrica, não resisti e chamei nosso paciente especial pra que assistisse à quarta aula sobre “O Cérebro Bioquimicamente Modificado”. Foi quando percebi que ele estava bem sossegado, medicado e… completamente paralisado! Os olhos vidrados, os movimentos limitados, quase um zumbi; Mesmo assim assistiu à aula, e como tem um alto quociente de inteligência, entendeu tudo o que disse. Fez uso do suco verde, retirou a alta ingesta de biscoitos doces, plantou grama do trigo e abraçou muitas árvores.

A aproximação continuava. Lá estava ele e a incansável mãe, assistindo a nossas primeiras aulas de culinária viva na pérgola do ambulatório de especialidades. Às vezes levantava das aulas e saia para dar uma volta, mas cumpriu o curso inteiro. Então tive que viajar mais uma semana, desta vez a Santa Catarina. Eu pensava com meus botões, que se ele se curasse, qualquer um poderia se curar. Principalmente, se conseguisse ficar normal sem os poderosos psicotrópicos. Maya e eu voltamos para a semana do diabetes e qual a nossa surpresa, quando na primeira aula do segundo curso, na terça feira, aparece um rapaz bem arrumado, de olhos vivos e atentos, os movimentos livres e me disse: “Doutor Alberto, esse que está aqui sou eu! Eu sou assim, deste jeito… não aquele ser que você conheceu…sou muito grato!”

Parece mais um deste milagres que venho testemunhando. Digo que “parece”, pois apenas começamos o trabalho de recuperação. Eu lhe disse que deve aprender a “viajar” na realidade, ter o cérebro livre, sem a necessidade de euforizantes ou substâncias que modifiquem o estado de consciência. Ser feliz com o que se tem dentro do pensamento. Eu o convidei para tornar-se um assistente da nossa equipe.

É uma vitória, para a equipe de medicina e de cozinha, para todos os cidadãos e representantes das casas religiosas que lhe deram auxílio, para o pessoal do CAPS, para o colega Dr. Bruno Augusto, para nossa secretaria de saúde e nossa cidade. Uma esperança para todos aqueles que passam pela mesma dor e necessitam de um bálsamo. Um caso exemplar, que nos mostra ser possível a recuperação do cérebro biologicamente alterado, da intrincada rede cerebral de moléculas biológicas, emoções e pensamentos que desafia o homem em sua caminhada.

Capão Bonito é mais saúde!

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Alberto P. Gonzalez, médico
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Curso – Ambulatório de Especialidades
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